Avanços da medicina e da tecnologia reforçam importância de ter a disciplina na formação de profissionais

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23/01/2024 17h28

Inteligência artificial, edição genética e outros avanços levantam necessidade da ampliação da bioética nos currículos de saúde.

A clonagem da ovelha Dolly está na memória de muitos que viram a repercussão da iniciativa, que estampou, à época, capas de jornais, revistas e programas de televisão em todo o mundo. O caso ocorreu no final da década de 1990 e ainda desperta debates acalorados sobre os limites éticos da manipulação genética. Mais de 20 anos após a publicação do estudo, vivemos uma era de desenvolvimento genômico nunca visto, com terapias gênicas, edição de genes e sequenciamento em larga escala de determinadas populações. Esses avanços, em conjunto com a inteligência artificial, monitoramento remoto de pacientes e compartilhamento de dados apresentam um novo desafio para a saúde. Afinal, como as discussões envolvendo a bioética – ou seja, dos princípios éticos que norteiam a medicina e outras ciências biológicas – sobre essas questões estão sendo abordadas na formação de novos profissionais?

A bioética é a ciência responsável por analisar, orientar, compreender e questionar as questões éticas relacionadas à vida, à morte e à saúde. Ela norteia discussões sobre o início e o fim da vida, os limites éticos de pesquisas clínicas, manipulação genética e tantos outros assuntos que a compreensão técnica sozinha não consegue contemplar. Para Eduardo Troster, professor do eixo de humanidades do curso de medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein e membro do Comitê de Bioética da instituição, a melhor maneira de definir a bioética é como um casamento entre as ciências biológicas e a ética.

“A bioética nasce mais ou menos na década de 1970, a partir da observação de que o desenvolvimento da ciência, que tem que explicar como o mundo é, precisa ser acompanhado da ética, caso contrário, o resultado pode ser desastroso”, afirma. “A ética é um freio fundamental que ajuda a nortear o desenvolvimento científico.”

Elda Bussinguer, pós-doutora em saúde coletiva e diretora da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), lembra que, assim como a Revolução Industrial virou o mundo de cabeça para baixo e forçou uma reconstrução a partir de novos valores e novos desafios, vemos hoje uma nova revolução com um dos maiores impactos já observados na humanidade.

Isso porque, segundo ela, a chamada Revolução 4.0, marcada pela otimização de processos e uma interface cada vez mais próxima entre máquinas e humanos, altera a vida das pessoas em todas as áreas: profissional, emocional e na saúde. “Não sabemos onde isso vai chegar e é natural ter medo, ao mesmo tempo, em que precisamos ter em mente os benefícios que o desenvolvimento dessas novas tecnologias traz. E, claro, é preciso lembrar que a inteligência humana ainda é superior a qualquer outra criação humana. O único limite possível para a inteligência humana deve ser a ética”, opina.

Próximos passos para a bioética

Em um cenário de desafios cada vez mais complexos nos sistemas de saúde do mundo, como limitação de recursos e iniquidades, além do ritmo acelerado com que as inovações tecnológicas têm sido incorporadas à prática clínica, a bioética tornou-se ainda mais uma disciplina imprescindível no currículo, garantindo que profissionais de saúde tenham as ferramentas necessárias para lidar com esses dilemas no dia a dia.

Contudo, embora seja listada como competência geral obrigatória pelo Ministério da Educação (MEC) nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de graduação de medicina, a ética – e, especialmente, a bioética – ainda ocupa um lugar tímido nas grades curriculares das principais escolas de medicina do país.

Bussinguer defende a necessidade de uma abordagem transversal sobre bioética em todos os cursos de saúde, algo que ainda não acontece como regra. Ela afirma que, muitas vezes, o tema aparece nos currículos apenas para cumprir exigências do MEC, sem ser aprofundado da maneira necessária.

“Nós temos legislações sobre cuidados paliativos, sobre envelhecimento, mas esse debate não está nas escolas”, alerta a diretora da SBB. “Mais necessário do que criar um curso de graduação em bioética, é necessário termos a bioética como um campo transversal. É discutir em sala de aula temas como política, economia, espiritualidade e direito à saúde, e não apenas tecnologia.”

Para ela, um dos principais entraves no avanço das discussões bioéticas no país é a própria falta de conhecimento sobre essa ciência. “Tenho a convicção de que nós ainda não estamos fazendo o suficiente para capilarizar esse processo de reflexão da bioética no Brasil. Nosso grande desafio é trazer a reflexão política, jurídica e ética para dentro das escolas. Precisamos convidar os médicos a pensarem que a medicina pode e deve ser mais humanizada.”

Apesar da chegada das novas tecnologias, Troster lembra da importância de manter o foco também em questões já existentes, justamente tentando impedir que elas sejam ampliadas sem as devidas ponderações.

“O avanço tecnológico segue a toda velocidade, mas devemos olhar cada vez mais para as iniquidades sociais já existentes a partir do ponto de vista da bioética”, analisa. “Vamos ver muito mais sobre inteligência artificial, genética, medicina de precisão nos próximos anos. Por outro lado, veremos os desafios que já enfrentamos aumentarem. Como vamos trabalhar isso? Essas tecnologias vão servir para todo mundo?”, questiona.

Avanços não param e carecem de debate profundo

Como exemplo da relevância do tema estão os testes genéticos, um mercado avaliado em US$22 bilhões, segundo dados da Global Market Insights. Eles estão cada vez mais acessíveis: um dos mais populares do Brasil pode ser adquirido por um valor aproximado de R$ 300. São testes que prometem informações sobre ancestralidade e traços sobre a predisposição genética para doenças.

Mas ter ferramentas disponíveis não implica em uma recomendação sem critérios. Por exemplo, a descoberta da predisposição para o desenvolvimento de uma doença para a qual não existe cura, e sem o devido acompanhamento médico pode ter um impacto na vida do paciente. E é a bioética que auxilia o profissional de saúde no diálogo com esse indivíduo, como salienta Troster.

“Vamos supor que um paciente faz esse teste e descobre uma predisposição para um tipo de demência. Eu, como médico, tenho o dever de conversar com esse paciente e explicar que nem sempre há algo que possa ser feito com tal informação. Eu não vou decidir pelo paciente, mas orientá-lo sobre todas as possibilidades diante daquilo”, diz.

Bioética no uso de inteligência artificial

Outro avanço exponencial que tem estado no palco de discussões bioéticas é o uso das inteligências artificiais generativas na prática clínica, principalmente nos processos decisórios. Um artigo publicado na Nature destacou que a IA desenvolvida pelo Google especificamente para uso médico conseguiu acertar mais diagnósticos de doenças cardiovasculares e respiratórias do que médicos, além de ter uma linguagem mais empática. Ao mesmo tempo, há casos em que estudantes introduziram o ChatGPT-4 em um exercício de diagnóstico e a ferramenta errou.

O fato corrobora a necessidade de explorar mais o tema e a preocupação com o impacto da IA no ensino da medicina já aparece em publicações científicas. Em artigo publicado em 2020 no NJP Digital Medicine, também da Nature, pesquisadores listaram três conceitos-chave que os estudantes de medicina devem compreender para aprender a utilizar a tecnologia: usar, interpretar e explicar.

Com base na experiência de uma abordagem aplicada na Universidade de Medicina de Toronto e nos “datathons” do MIT Critical Data’s, iniciativa global que estimula a capacidade local de IA na área da saúde a partir de uma perspectiva de equidade, o estudo publicado destaca na conclusão que “será essencial que os alunos tenham oportunidades de aprendizagem curriculares e extracurriculares sobre o uso clínico, limitações técnicas e implicações éticas das ferramentas à sua disposição.”

A ideia é que tecnologias dessa natureza sejam ferramentas de auxílio em processos decisórios, para evitar que sinais passem despercebidos durante a anamnese, o que permitiria mais tempo para que o profissional de saúde examinasse o paciente de fato. A responsabilidade sobre as decisões tomadas, entretanto, ainda é do profissional de saúde em uso do sistema.

Para Troster, a IA chega para beneficiar não apenas médicos como também pacientes. “Se o médico sozinho acerta 90% dos diagnósticos e a máquina 95%, o melhor cenário para o paciente é unir o conhecimento de ambos”, pontua. “Mas não podemos perder o controle. Se um carro automático atropela uma pessoa, por exemplo, e o defeito não foi do sistema, a responsabilidade ainda é do condutor. Com a medicina e o uso de inteligência artificial, a lógica precisa ser a mesma.”

Texto: Futuro da Saúde

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